Novelas Nada Exemplares
Editôra Civilização Brasileira S.A. Rio de Janeiro, 1965.
Pensão Nápoles
Desde que aportou em Curitiba, Chico vivera às margens do Rio Belém e queixava-se de que tinha as unhas sujas de seu barro amarelo. Para ser feliz deveria, em menino, ter pescado um lambari de rabo vermelho. Sonhava então em fugir para outra cidade – ah, Nápoles!
Auxiliar de escritório, noivo, de bigodinho, morou em tôdas as pensões: Primavera, Floriano, Bagdá. Definhava ora na sórdida espelunca de nome pomposo, ora na salinha escura do escritório, onde espirrava entre o pó dos papéis. A eterna promessa era de aumentarem-lhe o salário no ano seguinte – não podia esperar mais um ano. Distraía-se perseguindo o vôo das môscas, contava as rugas da testa do gerente, errava nas contas e, ao receber a correspondência, perguntava ao carteiro:
- Alguma carta de Nápoles?
Sabia o que era – o chamado das janelas. Em vez de partir, mudava de emprêgo, de noiva, de pensão. Respondia ao primeiro anúncio de – “Precisa-se de môço para lugar de futuro.” O Futuro era outra rua de Curitiba, com seus plátanos antigos na calçada, as solteironas à janela, o Rio Belém dos quintais miseráveis e os piás atrás dos lambaris de rabo vermelho.
A salvação era casar, transferir-se para o outro lado da cidade, lá onde a água do rio não chegasse – com as chuvas, alagava os quintais, cobria de lama os sapatos e os sapos coaxavam dentro da cozinha. Irrompia, sem aviso, rio de nascente oculta, sob os pés dos amantes distraídos. A prefeitura ignorava-lhe o curso subterrâneo; rio de pobre, não fôra o Belém, com que água as mães dariam nos piás o banho do sábado?
Aos trinta anos, magrinho, de bigode bem prêto, Chico fugia do rio. Era môço triste. Naufragara com seus trastes na Pensão Nápoles, não a escolhera pelo nome. Fôra condenado às pensões baratas que margeiam o rio, partilhando o quarto com estranhos. Consumira-lhe as economias o tifo prêto do Rio Belém e agora perdera o emprêgo. Diante de uma janela, o vento da viagem arrepiava-lhe os cabelos do peito magro.
- Imagine o que na minha idade Alexandre Magno havia feito! – dizia ao colega de quarto.
O outro olhava-o com espanto.
- Se ao menos não fôsse o rio... – repetia, deitado em cuecas na cama, limpando sob as unhas uma sombra de barro.
Com o tifo até a noiva perdera, êle que fôra sempre noivo! Não conseguia dispensar uma noiva na sua solidão. Após breve namôro, entrava na sala, elogiava o café com rosquinhas. Já podia então almoçar com vinho aos domingos. Tinha casa para se abrigar à noite, em vez de correr pelas ruas sob a garoa. Môço sem futuro, a noiva devolvia-lhe o anel.
Depois do tifo prêto foi a pneumonia. Nas tardes alucinadas de febre, Chico lembrava-se do pai. Homem severo, não admitia riso na sua presença. Quando fugiu de casa imaginou que o outro nem lhe desse pela falta. Nunca escreveu, informando seu enderêço, na ronda das pensões. Tarde demais, soube que o velho não deixara retirar sua cadeira da mesa. A mãe dispunha mais um prato, como se Chico viesse, todos aquêles anos, almoçar e jantar em casa. De noite, o pai subia ao quarto do rapaz, batendo na porta: “Chico, Chico, você voltou para casa, meu filho?” Morreu de tristeza, antes que Chico visitasse a família. Agora sonhava com o pai, a escutar sua voz rouca de velho, ao lado da cama: “Chico, você veio pra casa, meu filho?”
Êle (que matara o próprio pai) não fizera mal às sua noivas. Ah, as noivas de Chico! Não era volúvel, como elas o acusavam – a tôdas amou. Nem uma gostou dêle para entender que não queria ser enterrado com os pés no Rio Belém. Propunha que fugissem e se casassem noutra cidade. Qual das ingratas confiou no seu amor? À noite rondava-lhes as casas, tôdas dormiam, esquecidas dêle a errar na garoa fria.
Em junho a garoa é o céu de Curitiba. Sob a janela de uma das ex-noivas, havia começado a espirrar. A dona da Pensão Ali Babá não o quisera no quarto com aquela tosse. Escondido dos hóspedes, foi retirado de padiola para a enfermaria coletiva. Sobreviveu e aquecia-se ao raio de sol atrás da vidraça, fingindo não ver os serventes que abandonavam uma cama vazia no pátio – que significa um estrado sem colchão ao sol?
Depois do tifo prêto e da pneumonia foi a vez da Pensão Nápoles. O nome não o deixava dormir.
- Vamos nos engajar como marinheiros no primeiro navio?
- Não tem mar, Chico, na tua Curitiba.
Êle cuspia lá da janela, cuspia sangue contra o rio.
Auxiliar de escritório, noivo, de bigodinho, morou em tôdas as pensões: Primavera, Floriano, Bagdá. Definhava ora na sórdida espelunca de nome pomposo, ora na salinha escura do escritório, onde espirrava entre o pó dos papéis. A eterna promessa era de aumentarem-lhe o salário no ano seguinte – não podia esperar mais um ano. Distraía-se perseguindo o vôo das môscas, contava as rugas da testa do gerente, errava nas contas e, ao receber a correspondência, perguntava ao carteiro:
- Alguma carta de Nápoles?
Sabia o que era – o chamado das janelas. Em vez de partir, mudava de emprêgo, de noiva, de pensão. Respondia ao primeiro anúncio de – “Precisa-se de môço para lugar de futuro.” O Futuro era outra rua de Curitiba, com seus plátanos antigos na calçada, as solteironas à janela, o Rio Belém dos quintais miseráveis e os piás atrás dos lambaris de rabo vermelho.
A salvação era casar, transferir-se para o outro lado da cidade, lá onde a água do rio não chegasse – com as chuvas, alagava os quintais, cobria de lama os sapatos e os sapos coaxavam dentro da cozinha. Irrompia, sem aviso, rio de nascente oculta, sob os pés dos amantes distraídos. A prefeitura ignorava-lhe o curso subterrâneo; rio de pobre, não fôra o Belém, com que água as mães dariam nos piás o banho do sábado?
Aos trinta anos, magrinho, de bigode bem prêto, Chico fugia do rio. Era môço triste. Naufragara com seus trastes na Pensão Nápoles, não a escolhera pelo nome. Fôra condenado às pensões baratas que margeiam o rio, partilhando o quarto com estranhos. Consumira-lhe as economias o tifo prêto do Rio Belém e agora perdera o emprêgo. Diante de uma janela, o vento da viagem arrepiava-lhe os cabelos do peito magro.
- Imagine o que na minha idade Alexandre Magno havia feito! – dizia ao colega de quarto.
O outro olhava-o com espanto.
- Se ao menos não fôsse o rio... – repetia, deitado em cuecas na cama, limpando sob as unhas uma sombra de barro.
Com o tifo até a noiva perdera, êle que fôra sempre noivo! Não conseguia dispensar uma noiva na sua solidão. Após breve namôro, entrava na sala, elogiava o café com rosquinhas. Já podia então almoçar com vinho aos domingos. Tinha casa para se abrigar à noite, em vez de correr pelas ruas sob a garoa. Môço sem futuro, a noiva devolvia-lhe o anel.
Depois do tifo prêto foi a pneumonia. Nas tardes alucinadas de febre, Chico lembrava-se do pai. Homem severo, não admitia riso na sua presença. Quando fugiu de casa imaginou que o outro nem lhe desse pela falta. Nunca escreveu, informando seu enderêço, na ronda das pensões. Tarde demais, soube que o velho não deixara retirar sua cadeira da mesa. A mãe dispunha mais um prato, como se Chico viesse, todos aquêles anos, almoçar e jantar em casa. De noite, o pai subia ao quarto do rapaz, batendo na porta: “Chico, Chico, você voltou para casa, meu filho?” Morreu de tristeza, antes que Chico visitasse a família. Agora sonhava com o pai, a escutar sua voz rouca de velho, ao lado da cama: “Chico, você veio pra casa, meu filho?”
Êle (que matara o próprio pai) não fizera mal às sua noivas. Ah, as noivas de Chico! Não era volúvel, como elas o acusavam – a tôdas amou. Nem uma gostou dêle para entender que não queria ser enterrado com os pés no Rio Belém. Propunha que fugissem e se casassem noutra cidade. Qual das ingratas confiou no seu amor? À noite rondava-lhes as casas, tôdas dormiam, esquecidas dêle a errar na garoa fria.
Em junho a garoa é o céu de Curitiba. Sob a janela de uma das ex-noivas, havia começado a espirrar. A dona da Pensão Ali Babá não o quisera no quarto com aquela tosse. Escondido dos hóspedes, foi retirado de padiola para a enfermaria coletiva. Sobreviveu e aquecia-se ao raio de sol atrás da vidraça, fingindo não ver os serventes que abandonavam uma cama vazia no pátio – que significa um estrado sem colchão ao sol?
Depois do tifo prêto e da pneumonia foi a vez da Pensão Nápoles. O nome não o deixava dormir.
- Vamos nos engajar como marinheiros no primeiro navio?
- Não tem mar, Chico, na tua Curitiba.
Êle cuspia lá da janela, cuspia sangue contra o rio.
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