O Rio Belém ganha uma nova face na cidade: o projeto do Passeio Público

Ao final do século XIX, encontramos uma Curitiba de indústria acanhada, cujo principal produto era a erva-mate, levada em carroções para o porto de Paranaguá e para outros países da América Latina. Para se ter uma ideia, entre 1885 e 1886, a cidade possuía uma população de 15.000 habitantes, 1.286 prédios urbanos e 15 engenhos, destes oito a vapor e sete hidráulicos. Ainda encontramos pela cidade ruas estreitas e enlameadas, um abastecimento de água potável precário, levando a população a recorrer a quatro fontes, nas quais a água era pura e cristalina, havendo, em cada uma delas, uma bica baixa. 

Passeio Público em 1887.
Acervo: Casa da Memória/ FCC.

Os rios não estavam poluídos por detritos industriais. O maior problema enfrentado pela cidade eram os esgotos, os alagamentos e os pântanos, decorrentes da geografia e topografia de Curitiba. As águas estagnadas eram objeto de combate, pois se imaginava, nessa época, que as doenças se formavam nos locais pestilentos e eram transmitidas através do ar. Curitiba só teve água encanada no século XX, quando os canos de ferro produzidos pelas grandes cidades industriais permitiram maior acessibilidade à água e a depósito de esgotos. Dessa forma, diferentemente de grandes cidades industriais europeias a época, ainda não se presenciavam, na Curitiba do final do século, máquinas e multidões. 

Apesar de suas características, Curitiba era, desde 1856, a capital da Província do Paraná. Por isso, havia uma preocupação por parte dos governantes em atribuir um status de capital à cidade. A criação de um Jardim Botânico ou Passeio Público data de 1857, cuja proposta pauta-se na construção de um Horto Municipal, pertence ao projeto de elevação do status da capital. 

Apenas no ano seguinte, o dessecamento de pântanos e águas estagnadas ao redor do Centro constituiu-se em uma preocupação oficialmente registrada, verificada no ofício encaminhado pelo Dr. Muricy à presidência da Província alertando sobre o perigo da epidemia de colera morbus causada pelas águas estagnadas (1). Embora se tenha proibido o despejo de esgotos nos pântanos, os banhados e o lamaçal continuavam a ser o flagelo que preocupava a administração pública, a qual acaba por contratar engenheiros para examinar as condições do terreno da capital e as necessidades de saneamento. Ao diagnosticar a causa da umidade da capital proveniente da natureza pouco permeável do subsolo e da declividade quase nula dos talvegues dos rios Ivo e Belém, vários trabalhos de canalização são feitos dentro da cidade, porém insuficientes para resolver o problema das regiões pantanosas de Curitiba. 

Reprodução de mapa do Passeio Público em 1887.
Acervo: SEEC/PR.

Sob o título de Higiene Pública, o Jornal Dezenove de Dezembro comenta as condições da cidade em 1885, enfatizando as características do Rio Belém: 

Desde a ponte situada no Bourlevard 2 de julho, até o tanque do Sr. Bittencourt, o Rio Belém é muito estreito e sinuoso, de modo que permanentemente alaga aos terrenos que estão situados em suas margens numa grande extensão, do que resulta ficarem convertidas em brejos de águas estagnadas, que com resíduos vegetais que ali se acumulam, e, a favor dos fortes calores do verão, converteram-se em focos de febres malignas, paludosas e intermitentes, ponde em verdadeiro risco as boas condições higiênicas que deve ter a cidade. (2)

Além disso, o jornal atenta para a necessidade urgente de realizar obras de saneamento, atribuindo a essa parte central da cidade um perigo que ameaça a saúde pública. Somente com o projeto do Passeio Público, apresentado em janeiro de 1886 pelo Presidente Taunay à Câmara Municipal, poder-se-ia alterar o problema das regiões pantanosas de Curitiba. Tratava-se de um projeto para a construção de um logradouro público, a fim de urbanizar e sanear um espaço crítico da cidade, alvo de tantas referências à incompetência da Câmara e do poder público. Ademais, traria um embelezamento à cidade. 

A implantação do Passeio Público não pode ser entendida sem se abordar as transformações urbanas ocorridas na Europa. No século XIX, as cidades passam a ser analisadas em discursos de médicos, de engenheiros, de políticos e de outros preocupados com a recente descoberta do meio urbano como um novo problema (3). Cidades europeias como Londres ou Paris, ao receberem um grande fluxo de massas migratórias devido à Revolução Industrial e às transformações tecnológicas, tiveram sua configuração urbana mudada. Aglomerações, vielas sinuosas e escuras e o acúmulo da pobreza precisavam passar por reformas, pois é uma época em que se começava a reavaliar a importância da higiene pública (4)

Curitiba, embora ainda não fosse atingida por esses tipos de miséria, tratou de seguir o exemplo para evitar que o mesmo acontecesse. Para tanto, foram definidos novos arruamentos, hospitais, matadouros, bem como desenhos de praças e manutenção de áreas verdes. Começou-se, então, a legislar com o amparo de técnicos, transformando o aformoseamento e a geometria em expressões muito utilizadas, bem como a estética da cidade. A técnica era, portanto, o que solucionaria os males ao atingir a salubridade. 

No local onde foi construído o Passeio, havia a Chácara de Nhá Laura, também conhecida como “Chácara da Glória”, construída no alto de uma colina da qual se dominava a vista do então longínquo centro da cidade, local onde hoje está o Colégio Estadual do Paraná (5). Isolada no bosque, a chácara possuía um imenso casarão colonial e seus terrenos acabavam à margem do Tanque do Bittencourt. 

Chácara de Nhá Laura, local onde hoje se ergue o Colégio Estadual do Paraná
Acervo: SEEC/PR  (6)

Havia um engenho hidráulico e a residência de Caetano Munhoz, situados no bairro Alto da Glória, que foram arrasados por um incêndio, acabando por abalar a fortuna de Munhoz. A empresa Silva e Irmãos adquire a propriedade, reconstruindo o engenho de erva mate e vendendo sua produção à empresa comercial uruguaia pertencente a Francisco Fasce Fontana. Porém, a ervateira estava com muitas dívidas, as quais foram cobradas pessoalmente por Fontana que passa a se tornar sócio da então Silva, Irmãos e Fontana. 

Além de adquirir o engenho, Fontana fica noivo de Maria Dolores de Leão, filha do Desembargador Ermelino de Leão. Ao iniciar a modernização de sua fábrica para a força hidráulica, Fontana fez centenas de tapumes encobrindo toda a propriedade. O noivado foi, inclusive, motivo de chacota na imprensa (7), pois se acreditava que o noivo não havia feito os preparativos para o casamento. Nas vésperas do casamento, Fontana mandou derrubar os tapumes da reforma de sua fábrica e a velha chácara apareceu transformada em excelente vivenda, cercada de verde, cortada por canais navegáveis por pequenas canoas. O banhado que dominava a maior parte do terreno foi transformado num dos mais belos jardins de Curitiba da época. 

Embora o portal da nova construção tivesse causado grande impressão, maior ainda foi o impacto de todos ao se depararem com as obras de saneamento realizadas no terreno. O rio teve seu curso alterado, o terreno foi saneado e preparava-se o local do futuro jardim, que mais tarde ganharia fama em Curitiba. A residência Fontana viria a ser conhecida como Mansão das Rosas, demolida em 1974. Algumas fotos registram membros das famílias Leão e Fontana passeando de barco no trecho do Rio Belém que corria nos fundos do jardim. 

O então Presidente da Província, Visconde Alfredo Taunay, ao presenciar o casamento de Fontana, verificou o contraste entre o enorme terreno da mansão de Fontana com a retificação do Rio Belém e as outras áreas próximas, como a região pantanosa conhecida como o Banhado do Bittencourt. O presidente viu no ervateiro um ótimo diretor de obras para o projeto que começava a conceber para solucionar o problema da região. 

A proposta de criação do Passeio Público foi enviada à Câmara e aprovada. Fontana descreve os terrenos em que foi implantado o Passeio Público como “um lugar antes ocupado por um enorme pântano que era o justo terror da população, que via nele o foco e origem de inúmeras enfermidades malignas” (8). Três quartos dos terrenos eram de propriedade municipal, atravessados por um número considerável de canais do rio Belém em todos os sentidos, formando uma extensão fluvial superior a dois quilômetros. 

Após sua implementação, o Passeio Público passou a fazer divisa com o Bourlevard 2 de julho (atual Av. João Gualberto), a Rua Fontana (atual Rua Presidente Faria), a Rua Serrito (atual Rua Carlos Cavalcanti) e com os terrenos de Joaquim Bittencourt e Laura Borges, a Nhá Laura. O antigo tanque foi limpo e tanto ele como o Rio Belém foram tornados navegáveis em mais de 600 metros de canais, “fazendo-se uso de comportas que permitem renovar as águas constantemente” (8). Com arborização, o Passeio Público foi inaugurado em 2 de maio de 1886, sendo Francisco Fasce Fontana nomeado seu Diretor. 

Muitas foram as pessoas curiosas para conhecer o primeiro parque da cidade e, segundo o Jornal Gazeta Paranaense, “(...) [não] houve dúvida, quem intimamente não elogiasse o administrador da Província pelo benefício que fez a essa capital. (...) a festa esteve animadíssima e a tarde esplêndida” (9). Também não faltaram elogios à administração pública e associou-se a construção do Passeio a um serviço de higiene pública, pois acreditou-se substituir “um foco de infecção, um centro de miasmas pestilenciais por logradouro, o mais possível a saúde geral, pela condensação de vegetação e escoamento regular das águas” (10)

Os Presidentes seguintes também operaram obras no Passeio Público, como a construção de pontes artísticas sobre o Rio Belém, uma entrada geral com duas avenidas ao lado do Passeio e um largo ou praça, onde está erigida uma engenhosa máquina rodante de cavalinhos para recreio das crianças. Ao referirem-se ao Rio Belém, palavras como foco de pestilentos miasmas, sujo e vagaroso, local de brejos imundos davam o tom dos discursos que os Presidentes da Província tomavam para legitimar a necessidade de empregar recursos públicos no Passeio. Esses discursos estão expressos nas palavras do Presidente Faria Sobrinho, quando este inaugurou as novas obras em 1886: 

Que o Belém sujo, outrora, hoje corra cristalino, em caprichosas voltas, formando interessantes ilhas e curiosos labirintos, ao lado de formosas ruas e avenidas, dentre cujas leivas se destacam ora preciosos arbustos de nossos jardins, ora soberbas árvores das nossas florestas. Que estancadas as fontes de deletérios miasmas, o esforço ingente duma máscula energia, arrancou do fundo dos tremedais enorme tabuleiro onde, ao influxo de um gênio artístico, foram pouco a pouco se imprimindo os relevos que formam o detalhe do soberbo Passeio Público. (11)

A partir da inauguração do Passeio e de suas constantes obras de revitalização, os jornais atribuem outra faceta ao Rio Belém, como se pode observar na publicação do Jornal Dezenove de Dezembro, o qual atribui ao rio características como: o oferecedor dos verdes tabuleiros que existem nas margens, das majestosas palmeiras, das magníficas pontes, dos diversos passadiços, da máquina de cavalinhos, do lindo bote que sulca as águas. (12)

Os últimos trabalhos de Fontana como Diretor do Passeio Público alteraram ainda mais as características do Rio Belém: o levantamento com aterro feito nas margens e a colocação de 230 metros de cano de cimento para esgoto das águas das chuvas. Além disso, o grande lago foi ampliado e escavado, e também foi construído um novo açude no limite da Chácara Bittencourt, dotado de duas comportas de um sistema de renovação das águas. O novo açude também recebeu uma ilha arborizada e adornada em seu centro. A Rua Serrito (atual Carlos Cavalcanti) também sofreu alterações, quando uma vertente de água potável que estava abandonada nessa rua recebeu canalização e se posicionou um chafariz no lado externo do Passeio. 

Apesar de tais investimentos, as tensões políticas e a falta de recursos levaram a certa decadência do logradouro no final do século XIX, mas nem por isso o local deixou de ser o lazer favorito da população, com grande movimentação aos fins de semana. 

Curitiba, no início do século XX, conta com uma população de cerca de 60 mil habitantes (13). O Almanhach do Paraná, datado de 1900, publica um texto de Sebastião Paraná, o qual traça um panorama da cidade: 

A bela Capital do Paraná é iluminada a luz elétrica e percorrida por bondes da Companhia Ferro-Carril Curitibana. Uma rede telefônica facilita as comunicações. É atravessada pelos riachos Ivo e Belém, que também contribuem para a formação do Rio Iguaçu. O Belém serpenteia hoje através do Passeio Público que é um dos principais ornamentos. (14)

Em O Brasil Atual, Arthur Dias descreve a Curitiba de 1903 traçando um panorama positivo da cidade, especialmente a respeito do Passeio “(...) onde o riozinho Belém capricha numa das curvas todas graciosas (...) e não teve que ser incomodado no seu curso, mas decorado e alinhado com leves pontes rústicas e outras fantasias da arquitetura paisagística (...)” (15). Arthur Dias atribui a este logradouro como sendo um dos mais lindos das cidades do sul, embora o ache um pouco descuidado (16)

A visão romanceada de Dias não corresponde à tônica da descrição da Curitiba do início do século, na qual estava presente a crítica à administração municipal, cujo descaso dava a cidade um aspecto desolador devido à iluminação pública precária, ruas por calçar, falta de serviço de limpeza pública regular, passeios por construir e muita lama. Quanto ao Passeio Público, as principais queixas estavam nas pontes destruídas, árvores maltratadas, alamedas esburacadas, sem muro nem cerca, protegidas apenas por um fosso de um lado e do rio pelo outro. Cândido de Abreu foi o gestor que deu ao Passeio a devida atenção ao reformá-lo e dotá-lo de muitos benefícios que alinham tendências da época no que se refere ao lazer, arquitetura e paisagismo. 

Mesmo com todas as obras feitas, o problema que o Rio Belém representava para a cidade não foi solucionado. Em 1908, o prefeito de Curitiba chama a atenção do Presidente de Estado para “a necessidade de rebaixar o Rio Belém até a barra do Iguaçu para dar escoamento às águas que em tempos de chuva alagam essa cidade” (17). Em 1916, o prefeito Coronel Luís Antonio Xavier desapropriou o engenho Bittencourt, anexando sua área e o tanque ao Passeio Público. A desapropriação do engenho foi justificada pela necessidade de terminar as obras que estavam sendo executadas no Passeio, as quais estavam expostas e poderiam ser abaladas ou destruídas em virtude de enchentes ocasionadas pelos intensos temporais. O tanque era tido como imprescindível para complementar as obras. Parte do terreno da Chácara e Engenho integrados ao Passeio Público foram doados pelo município em 1916, para a construção da sede do Círculo Militar. (18)

Primeiro Jardim Botânico de Curitiba, atual Passeio Público, em 1908
Acervo: IPPUC

Barcos no Passeio Público, década de 1920
Acervo: Casa da Memória/FCC

Notas:
(1) LACERDA, Cassiana Lícia de. Passeio Público: Primeiro Parque Público de Curitiba. Curitiba: Fundação Cultural de Curitiba, v.28, n. 126, ago.2001. p. 22.
(2) GARCEZ, Luiz Amando. Curitiba: Evolução Urbana. Curitiba: Imprensa Universitária da Universidade Federal do Paraná, 2006. p. 23.
(3) SUTIL, Marcelo Saldanha. O espelho e a miragem: ecletismo, moradia e modernidade na Curitiba do início do século XX. Curitiba: Travessa dos Editores, 2009. p. 24.
(4) Ibid, p. 24.
(5) GARCEZ, Luiz Amando. Curitiba: Evolução Urbana. Curitiba: Imprensa Universitária da Universidade Federal do Paraná, 2006. p. 38.
(6) Ilustração Brasília. Edição Comemorativa do Centenário do PR, Ano XLIV, número 224. dezembro 1953. p.179.  
(7) LACERDA, Cassiana Lícia de. Passeio Público: Primeiro Parque Público de Curitiba. Curitiba: Fundação Cultural de Curitiba, v. 28, n. 126, ago 2001. p. 39. 
(8) Ibid, p. 42.
(9) Jornal Gazeta Paranaense, 4 de maio de 1886. Acervo da Casa da Memória. 
(10) LACERDA, Cassiana Lícia de. Passeio Público: Primeiro Parque Público de Curitiba. Curitiba: Fundação Cultural de Curitiba, v. 28, n. 126, ago.2001. p. 46.
(11) Ibid, p. 56. 
(12) Ibid, p. 58.
(13) Ibid, p. 17.
(14) LACERDA, Cassiana Lícia de. Passeio Público: Primeiro Parque Público de Curitiba. Curitiba: Fundação Cultural de Curitiba, v.28, n. 126, ago.2001. p. 89.
(15) Ibid, p. 92.
(16) Ibid, p. 93. 
(17) Ibid, p. 94.
(18) O Círculo foi construído em 1940, fez limite com o Passeio até 1978, quando ocorreu o prolongamento da Avenida Mariano Torres, sendo desanexado desse logradouro.

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