De quando o Rio Belém era apenas mais um “ribeiro”

Reprodução de pintura - "Curityba em 1855"
Pintura de G. Schlichting reproduzindo a anterior de John Henry Elliot
Acervo: IHGPR

Começamos pelo ano de 1668. O Campo de Curitiba, nesse momento, conta apenas com dezessete moradores e está prestes a iniciar sua história como núcleo habitacional. Antes disso, a região já havia sido foco de atenção de um e outro aventureiro. Em 1646, o Capitão Gabriel de Lara, que já havia fundado a povoação de Paranaguá por volta de 1644, viaja até São Paulo com o objetivo de comunicar às autoridades responsáveis “o descobrimento de ouro de lavagem nos ribeiros dos Campos de Curitiba” (1). Os boatos de que havia ouro nessa região, confirmados pelo Capitão, já eram antigos. Um bandeirante, de nome Heliodoro Éobanos (ancestral próximo de Ébano Pereira (2), um dos primeiros povoadores da região), já anunciava pequenas manchas auríferas nesses campos em 1560, mas apenas no século seguinte a região atraiu aventureiros em busca do ouro de aluvião. 

Nesse momento da história, os rios mantêm uma importância fundamental na estrutura de qualquer núcleo habitacional. Além de sua função vital para a vida humana como fonte de abastecimento de água para a população e animais, os rios também tinham grande importância econômica, seja pelo ouro de aluvião, pela navegação ou mesmo pela pesca. 

A história de Curitiba também está diretamente ligada à história de seus rios, já que sua primeira vocação econômica é o ciclo do ouro de aluvião, encontrado nos vários ribeiros da região. Curioso observar que, durante o século XVII, todos os rios dos campos de Curitiba eram chamados de ribeiros, na falta de um nome indígena (3), o que dificulta a precisão na identificação dos rios indicados nos documentos oficiais produzidos durante esse período; na maior parte dos casos, apenas a localização, nem sempre exata, nos oferece a pista sobre qual rio os documentos se referem. 

Com as ambições despertadas pelas notícias sobre o ouro, “ao sertão aurífero afluíram os primeiros grupos históricos povoadores: o de Eleodoro Ébano, em 1647, com a administração das minas” (4), seguido por Baltazar Carrasco dos Reis e Mateus Leme. A história de Curitiba, portanto, é anterior ao ano de 1668; contudo, os primeiros documentos oficiais da região datam desse período e apresentam a vontade dos primeiros habitantes em elevar o pequeno núcleo habitacional ao patamar de Vila, para que houvesse a eleição das autoridades e a criação da justiça. 

No entanto, nem com a vontade dos habitantes, nem com a presença de Gabriel de Lara, capitão-mor de Paranaguá, a elevação de Curitiba à condição de Vila ocorre no tempo esperado pelos moradores. Não se sabe o motivo que impediu Gabriel de Lara de proceder à eleição das autoridades, de modo que, em 1668, não ocorreram as eleições para a câmara municipal. Cerca de vinte e cinco anos depois, em 29 de março de 1693, ocorre, enfim, a organização política de Curitiba, promovida por Mateus Leme, passando à condição de Vila. O nome escolhido foi Vila de Nossa Senhora da Luz dos Pinhais - antes dessa oficialização a região era chamada pelos habitantes e autoridades como Curitiba ou Campos de Curitiba. 

A criação da justiça era uma necessidade fundamental e reivindicada pelos moradores, já insatisfeitos com as infrações que estavam ocorrendo e que, na falta de um órgão de justiça, acabavam sem solução legal. Essa insatisfação pode ser percebida pelo documento que relata um fato ocorrido no dia 29 de Março de 1693, quando “(...) se ajuntou o povo todo desta Vila, e pelo capitão dela lhe foi perguntado, o que todos responderam em voz alta que se criasse a justiça para com isso ver se evitavam os muitos desaforos que nela se faziam (...)”. (5)

 A origem dos primeiros moradores dos Campos de Curitiba remonta a pequena povoação que vivia às margens do Rio Atuba. A informação de que haveria uma quantidade razoável de ouro na região de Curitiba traz alguns poucos moradores à região e, possivelmente, esses “primeiros habitantes constituíam uma população aventureira, errante, ocupada em batear o ouro de aluvião em mais de 30 ribeiros vistoriados por Gabriel de Lara (...)”. (6)

Sobre a mudança desses novos habitantes para a região do Largo da Matriz, atual Praça Tiradentes, conta a lenda que uma imagem de Nossa Senhora da Luz, muito venerada pelos moradores, sempre amanhecia com seu olhar voltado para certa direção, não importando o lugar em que havia sido deixada durante a noite. “Os mineradores residentes no povoado acreditavam que aquele seria um sinal da santa, indicando a direção exata onde deveria ser construída a capela definitiva para abrigar a imagem” (7). Ainda segundo a lenda, para ter sempre uma boa relação com os índios tinguis, esses povoadores buscaram os conselhos do cacique Tindiquera, para que ele indicasse o local mais apropriado seguindo a direção que a imagem da santa apontava. O cacique, após procurar por um bom tempo, levou esses habitantes a se instalarem no outeiro entre os Rios Belém e Ivo. 

 No Largo da Matriz, como era chamado, esses moradores vão construir dois símbolos: “uma capela de pau a pique coberta de palha, homizio da Fé, e um tosco tronco de pelourinho, representativo da Justiça” (8). Durante os anos seguintes, o Largo da Matriz, torna-se o centro das atividades políticas, religiosas e comerciais e, ao seu redor, foram construídas diversas casas residenciais (9). As casas eram construídas de pau a pique e barro batido, quase todas muito bem cuidadas (10). Boa parte dos moradores estava instalada às margens do Rio Barigui, visitando a vila apenas durante as festas religiosas e os “homens da Governança vinham a ela uma vez todos os meses” (11)

Alguns fatores impediram o crescimento populacional mais elevado na região da Vila de Nossa Senhora da Luz dos Pinhais. O isolamento, ocasionado por fatores geográficos, dificultava a venda da produção para as demais regiões da colônia portuguesa. Aqueles que insistiam em permanecer “acostumavam-se a plantar e criar quase somente aquilo de que necessitava para seu próprio consumo” (12). Além disso, o ouro de aluvião, um dos principais atrativos da vila, já começava a se tornar cada vez mais escasso nos ribeiros curitibanos. Ao descrever a situação das minas do Arraial Grande, Botiatuva e Morro Azul, Francisco Negrão aponta que os negócios não estavam bem, pois ao observar os inventários dos donos dessas minas, não se podia inferir prosperidade em ouro (13). Um dos poucos a prosperar na região foi o Capitão Antonio da Veiga, que demonstrou possuir boa quantidade de ouro por volta do ano de 1719 (13). No final do século XVII, por volta de 1695, a descoberta de ouro na região das Minas Gerais levou diversos aventureiros a tentarem a sorte em terras distantes dos Campos de Curitiba. 

O ciclo de povoamento em Curitiba modifica-se com a abertura do Caminho de Viamão, por ordem do capitão-general Caldeira Pimentel (14), tornando-se agora um projeto de ocupação fixa, diferentemente do que ocorria durante a mineração dos faiscadores. Aos poucos, surgem os chamados pousos e curais, onde o gado, trazido pelos tropeiros de São Pedro do Rio Grande, poderia descansar e engordar antes de ser levado até São Paulo. Esses animais “eram depois vendidos às necessitadas populações do rush do ouro, em Minas Gerais, cuja exploração mudou a história da ocupação do território brasileiro” (15). Com a modificação gerada pelo ouro de Minas e os demais problemas citados, o crescimento populacional em Curitiba será paulatino durante o século XVIII. 

No ano de 1820, o viajante naturalista Auguste de Saint-Hilaire observa a existência de duzentas e vinte casas “pequenas e cobertas de telhas, quase todas de um só pavimento, sendo, porém, um grande número delas feitas de pedra (...) e cada casa possuindo o seu quintal (pátio irregularmente plano com árvores frutíferas)”. (16)

Segundo Romário Martins, Curitiba, na época de sua elevação a capital da recém criada Província do Paraná, em 1854, era de “uma insignificância que de cidade só tinha o predicamento oficial” (17). A economia curitibana do XIX era baseada principalmente na criação de gado, vendido para São Paulo e Rio de Janeiro, na exploração da erva-mate, despachada, inclusive, para as cidades de Buenos Aires e Montevidéu, e no plantio de milho, feijão, aipim, batata, trigo e fumo (18)

De 1668, quando começa a história documentada dos habitantes dos campos de Curitiba, até fins do século XIX poucas são as referências a respeito dos rios da região – salvo alguns casos em que observamos descrições físicas e relatos sobre a existência de pedras preciosas nos leitos dos ribeiros. Um dos raros momentos em que os rios são vistos sob outro aspecto, além do físico ou econômico, refere-se à preocupação do Ouvidor Pardinho com o problema do lixo que é jogado pelos moradores nos rios da região: “decidindo que a população passaria a utilizar as águas do rio Ivo para beber e que o rio Belém receberia as “águas servidas”, ou seja, o esgoto” (19). No relato de viagem de Saint-Hilaire, a descrição dos rios é bastante sucinta: 

Vê-se em Curitiba duas fontes de pedra sem nenhum ornamento. Abaixo da cidade passam dois córregos, cujas águas são usadas pelos habitantes; um deles, que tem uma ponte feita de tábuas, corta a cidade de Castro. Existem também em torno da vila algumas nascentes de água muito boa, que são de bastante utilidade para seus habitantes. (20)

O relato de viagem de Avé-Lallemant, na metade do século XIX, aponta como característica principal da região o Rio Paraná (21), sem descrever maiores detalhes sobre seus usos. Confirmando a hipótese, já mencionada, que são poucos os relatos sobre os rios das região durante esse período. 

O problema das valas abertas foi recorrente durante o século XIX, especialmente no Largo da Matriz, como pode ser observado pela Ata da Câmara em nove de julho de 1856, no qual o senhor Paula Guimarães requereu “que se mandasse com urgência fazer dois paredões na vala, que corre na travessa e segue do Pátio da Matriz a sair da Rua da Carioca, chamado Beco do Saldanha (...)” (22). Até 1860 o problema ainda não havia sido solucionado e as reclamações acerca das valas abertas e da lama eram ainda assunto de debate na Câmara. 

Notas:
(1) MOREIRA, Júlio Estrella. Eleodoro Ébano Pereira e a fundação de Curitiba à luz de novos documentos. Imprensa da Universidade Federal do Paraná: Curitiba, 1972, p. 21.
(2) Ibid, p. 91.
(3) Ibid, p. 31.

(4) MARTINS, Romário. Terra e Gente do Paraná. Curitiba: Empreza Gráfica Paranaense, 1944. p. 210.
(5) NEGRÃO, Francisco. Memória Histórica Paranaense. A Tribuna, Curitiba, 1916, p. 63.
(6) PINTO, Rui Cavallin. Curitiba: 1668, 1693 ou outra data? Disponível neste link. Acesso em primeiro de abril de 2012.
(7) BERBERI, Elizabete ; SUTIL, M. S. . Tiradentes; a praça verde da Igreja. Boletim Informativo da Casa Romário Martins. Curitiba, v. 24, n. 120, p. 1-90, 1997. p. 1.
(8) MARTINS, Romário. Terra e Gente do Paraná. Curitiba: Empreza Gráfica Paranaense, 1944. p. 216.
(9) BERBERI, Elizabete. SUTIL, Marcelo Saldanha. Op. Cit. p. 5.
(10) WACHOWICZ, Ruy Cristovam. História do Paraná. Curitiba: Imprensa Oficial, 2001. p. 46.
(11) NEGRÃO, Francisco (Dir.). Boletim do Archivo Municipal de Curityba: Documentos para a história do Paraná. (Dir.) Curitiba: Livraria Mundial, 1924. p. 90. Disponível neste link. Acesso em 01/04/2012. 
(12) WACHOWICZ. Op. Cit.  p. 46.
(13) NEGRÃO, Francisco. Memória Histórica Paranaense. A Tribuna, Curitiba, 1916, p. 116.
(14) Livro 20 da Câmara de Paranaguá, fl. 120v, 19 set 1727.
(15) NETO, Vicente de Castro. Grande Curitiba: Um olhar sobre a evolução urbana. Disponível neste link. Acesso em primeiro de maio de 2012. p. 1.
(16) SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem pela comarca de Curitiba. Curitiba: Fundação Cultural, 1995. p. 105.
(17) MARTINS, Romário. Terra e Gente do Paraná. Curitiba: Empreza Gráfica Paranaense, 1944. p. 228.
(18) MARTINS, Romário. Terra e Gente do Paraná. Curitiba: Empreza Gráfica Paranaense, 1944. p. 231. SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem pela comarca de Curitiba. Curitiba: Fundação Cultural, 1995. p. 107.
(19) CORRÊA, Maria Celeste (Org). Museu Vivo: Guia ilustrado da história do Paraná. Curitiba: Olhar Brasileiro, 2007. p. 63.
(20) SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem pela comarca de Curitiba. Curitiba: Fundação Cultural, 1995. p. 106.
(21) AVÉ-LALLEMANT, Robert. Viagem pelas províncias de Santa Catarina, Paraná e São Paulo (1858). Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1980. p. 272.
(22) BERBERI, Elizabete; SUTIL, M. S. Tiradentes; a praça verde da Igreja. Boletim Informativo da Casa Romário Martins. Curitiba, v. 24, n. 120, p. 1-90, 1997. p. 8.

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